Śiva-sūtra, capítulo 1*
*com a vṛtti, atribuída a Bhaṭṭa Kallaṭa (síntese do comentário Vimarśinī, de Kṣemarāja).
tradução de João Carlos Barbosa Gonçalves
[material inédito, exclusivo para estudo pessoal, a ser citado apenas com o consetimento do tradutor]
caitanyam ātmā ||1||
O Eu é a Consciência.
“O cônscio (cetana) consciencializa (cetayate)”. O estado essencial dele é Consciência, que tem autonomia em toda atividade de cognição.
jñānaṃ bandhaḥ ||2||
A limitação é o conhecimento,
A limitação é o conhecimento dos objetos [dos sentidos] ou, devido ao encontro com o [fonema] “a” (com que termina o sūtra anterior), limitação [é não-conhecimento].
yoni-vargaḥ kalā-śarīram ||3||
o grupo das fontes e o corpo das energias.
A limitação é também o desdobramento de māyā e a limitação é a mácula agentiva, onde energia é atuação, um certo tipo de agentividade.
jñānādhiṣṭhānaṃ mātṛkā ||4||
A matriz é o substrato do conhecimento.
Matriz consiste disso que vai do “a” até “kṣa”:
“Não há, no mundo, pensamento desprovido de linguagem.
Entende-se que todo conhecimento é inerente à linguagem.”
udyamo bhairavaḥ ||5||
Bhairava é o emergir.
O emergir consiste na aparição ininterrupta da essência, o qual tem como causa a manifestação da natureza inata de Bhairava.
śakti-saṃdhāne viśva-saṃhāraḥ ||6||
Quando há a contemplação/conjunção do círculo das potências, ocorre o recolhimento do universo.
Círculo das potências: “As potências dele (…) são o mundo inteiro (…)”. Quando há contemplação/conjunção [do círculo], quando há a cognição interiorizada, ocorre o recolhimento do universo, eis a realidade do fogo da suprema consciência.
jāgrat-svapna-suṣupta-bhede turya-bhoga-saṃbhavaḥ ||7||
Na diversidade da vigília, sonho e sono, há o poder da experiência do turya (4º estado).
Na diversidade, isto é, em cada uma das várias manifestações, há a experiência, ou o encantamento, que consiste de fulguração. Aquele que alcança o yoga ensinado, mantém continuamente esse poder.
jñānaṃ jāgrat ||8||
A vigília é o conhecimento.
O conhecimento é o que provém dos sentidos exteriores, no âmbito dos objetos comuns a todos.
svapno vikalpaḥ ||9||
A divagação do pensamento é o sonho.
O sonho são os pensamentos, oriundos apenas da mente, no âmbito dos objetos não comuns [a todos].
aviveko māyā-sauṣuptam ||10||
O sono de māyā é a falta de discernimento.
O sono, que consiste de māyā, é a ausência de discernimento, a não cognição.
tritaya-bhoktā vīreśaḥ ||11||
O senhor dos sentidos é o experimentador dos três estados.
Ele é quem experimenta o encantamento, por meio de sua autonomia, dos três estados, vigília, etc.
vismayo yoga-bhūmikāḥ ||12||
Os estágios do yoga são o fascínio.
[Os estágios] indicam o repouso durante a ascensão em que ocorre a união com a suprema realidade.
icchā śaktir umā kumārī ||13||
A potência do anseio é Umā, a kumārī.
O anseio para o yogin é Parā, Parameśvarī, a potência constituída de autonomia. Kumārī é a Parā, no sentido de atividade lúdica da emissão e da absorção do universo.
dṛśyaṃ śarīram ||14||
O corpo é o perceptível.
O perceptível, seja o exterior ou o interior, que é tudo, manifesta-se como o seu próprio corpo, sem distinção: “eu sou isso”.
hṛdaye citta-saṃghaṭṭād dṛśya-svāpa-darśanam ||15||
Da instauração da mente no coração, procede a percepção da ausência do perceptível.
Do cultivo do foco da mente instável na luz da consciência, procede a percepção da ausência, ou vazio, que consiste da não-manifestação do perceptível, isto é, azul, corpo, alento ou intelecto, a ponto de o objeto exterior tornar-se o próprio corpo.
śuddha-tattva-saṃdhānād vā ‘paśu-śaktiḥ ||16||
Ou por meio da concentração sobre o princípio puro (śuddha-tattva), procede a potência do não-limitado.
Quando, nesse princípio chamado parama-śiva, [o yogin] instaura o universo, “ele (universo) é feito dele (śiva)”, o poder de limitação, chamado paśu, para ele deixa de existir, e então [o yogin] torna-se o senhor do universo, tal como sadā-śiva.
vitarka-ātma-jñānam ||17||
O foco contínuo é o conhecimento da essência.
Vitarka (foco contínuo) é vicāra (contemplação), “somente Śiva é a essência do universo”. Tal é o conhecimento da essência.
lokānandaḥ samādhi-sukham ||18||
A satisfação do samādhi (contemplação contínua) é o deleite do mundo.
Enquanto conjunto de objetos, o mundo (loka) é iluminado (lokyate), enquanto grupo de sujeitos, o mundo (loka) ilumina (lokayati). Sendo isso explicitado, a satisfação do samādhi [do yogin] é o deleite, constituído pelo encantamento com o mundo, que provém da concentração no repouso no estado de percipiente (pramātṛ).
śakti-saṃdhāne śarīrotpattiḥ ||19||
Com a contemplação do poder, ocorre a criação do corpo.
Ao tornar-se uno com a śakti mencionada anteriormente, sob o poder dela, um corpo, de acordo com a própria vontade, é criado.
bhūta-saṃdhāna-bhūta-pṛthaktva-viśva-saṃghaṭṭāḥ ||20||
[E também] a conjunção dos elementos, a dissociação dos elementos e a articulação do universo [surgem quando ocorre a contemplação do poder].
Elementos são o corpo, o prāṇa, etc. Conjunção é o incremento relativo à nutrição, etc., que está relacionado à destruição de doenças, entre outras coisas. A partir disso, dissociação é a distinção do corpo e o resto. Articulação do universo, que são coisas separadas por tempo, espaço, etc., é torná-las de âmbito conhecido. Quando há a contemplação do poder dito anteriormente, ocorre o surgimento disso.
śuddha-vidyodayāc cakreśatva-siddhiḥ ||21||
Do aflorar da esfera do saber puro, procede a realização do poder sobre o círculo [dos poderes].
Quando, com o desejo de apreender a essência do universo, contempla-se o poder, [sob o dito] “tudo é apenas eu”, a partir do aflorar da esfera do saber puro, realiza-se a Soberania, que consiste do domínio sobre o círculo dos poderes.
mahā-hradānusaṃdhānān mantra-vīryānubhavaḥ ||22||
Da contemplação do grande lago, procede a experiência da força do mantra.
Contemplação, que consiste da apreensão reflexiva, pela interiorização, de forma constante, da unidade com ele, do grande lago, que é Parā, a Consciência plena, por causa das propriedades de translucidez, nudez, profundidade, etc.